Pistas de homossexualidade na literatura

quinta-feira, 20 de agosto de 2009
I

Contextualização: Conversa entre Luísa e Leopoldina, duas mulheres casadas do século XIX, sendo a última uma apreciadora da boa vida, com bastantes amantes.

- Lembras-te quando estivemos de mal?
Luísa não se lembrava.
- Por tu teres dado um beijo na Teresa, que era o meu "sentimento" - disse Leopoldina.
Puseram-se a falar de "sentimentos". Leopoldina tivera quatro; a mais bonita era a Joaninha, a Freitas. Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a corte um mês!...
- Tolices! - disse Luísa corando um pouco.
- Tolices! Porquê?
Ai!, era sempre com saudade que falava dos "sentimentos". Tinham sido as primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírio de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração, as primeiras da vida!
- Nunca - exclamou -, nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti pela Joaninha!... Pois podes crer...



Eça de Queiroz, O Primo Basílio, 1878


II
(desculpem lá o inglês, mas é a versão que tenho)

It was a brief but violent passion. A month later they went to Cauterets, and Celia fell in love with Janet Patterson instead.

(...)

Also, so she
[a mãe] confided some years later to Celia, she had been afraid of her friendship for Bessie West.
"I've seen so many girls get interested in another girl and refuse to go out or take any interest in men. It's unnatural - and not right."


Mary Westmacott (também conhecida por Agatha Christie), Unfinished Portrait, 1934



Pois é, o grande retratista social do século XIX, o imortal Eça, falou com toda a naturalidade dos "sentimentos" que as jovens da época tinham umas pelas outras. e da forma como chegavam mesmo a "fazer a corte" umas às outras. Pareceu-me, pela minha interpretação do excerto, ser não só prática comum como também algo aceite como normal na altura, embora somente enquanto fase, enquanto primeira exploração. Obviamente, mulheres e homens tinham imperativamente de casar e constituir família, o que significava levar uma vida heterossexual. Isto não invalida, no entanto, que os seus sentimentos mais intensos tivessem tido como alvo uma pessoa do mesmo sexo, como é o caso da Leopoldina que, não obstante as suas mil e uma paixões e relações com homens, continua a considerar que foi uma mulher "a tal". De ressalvar, porém, que havia uma grande segregação por género no século XIX, pelo que as raparigas adolescentes só conviviam praticamente com outras raparigas, e os rapazes adolescentes com outros rapazes. Posto isto, mesmo que um dado jovem adolescente não tivesse tendências homossexuais, parece-me natural que explorasse a sua sexualidade com quem estava mais à mão: adolescentes do mesmo sexo.

Já no século XX e na convencional Inglaterra, a dama do crime Agatha Christie referiu de passagem os "sentimentos" de uma jovem menina por outra rapariga, sendo bastante mais explícita uns capítulos mais à frente, quando a mãe retira a Celia da "escola" onde estava por ter medo que esta se interesse pela amiga. Mais uma vez, e aqui bem mais vincadamente, a autora passou a ideia de que isto acontecia com frequência. Nesta passagem, o facto de uma mulher se interessar por outra mulher e não por homens é descrito como não natural e errado. Nada surpreendente, tendo em conta que este livro é de 1934. Se houvesse aqui uma apreciação positiva da homossexualidade, a controvérsia teria sido gigante. Assim, passou a mensagem de que a homossexualidade existe e é frequente, sem incendiar os ânimos da sociedade.

Outro livro que tem, todo ele, um toque de lesbianismo implícito e explícito é Netochka, do Dostoievski. Não coloquei aqui nenhuma citação, pois teria de ser o livro quase todo. Leiam, que é excelente.

Só para terminar: encontrei estes excertos porque li os livros em causa, não por ter feito pesquisa. E nestes livros é a homossexualidade feminina que é descrita com naturalidade, não a masculina. Ponho as mãos no fogo em como há muito menos referências por aí aos "sentimentos" dos homens do que aos das mulheres, não por ser menos comum, mas simplesmente porque práticas amorosas e sexuais entre homens representavam (e infelizmente ainda representam) um atentado à masculinidade do homem. Nas mulheres, não era grave desde que fosse uma fase, uma brincadeira, uma exploração - e não é isso que ainda consideram as nossas relações hoje em dia?. Nos homens, nem isso.


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